Eles quase sempre vinham
de barracos de favelas, com histórico de violência e responsáveis que usavam
drogas. Eram enviados às casas de amparo pelos juízes de menores.
A história mais
recorrente era a do amante eventual da mãe, que no silêncio da madrugada
abusava das crianças que moravam no casebre. De preferência, dos meninos.
Esse amante, assim que
engravidava a companheira, desaparecia para sempre. E era substituído por
outro, resignadamente aceito pela mãe, pois se constituía no único provedor de
alguns trocados para compra de alimentos.
A face vil desse tipo de
homem desprezível revela-se no relato de uma menina de seis anos: certa tarde,
a pequena achou uma moeda caída no chão do barraco. Foi ao bar e comprou um
pirulito. Voltou para casa e estava chupando o pirulito, quando chegou o amante
da mãe. Ele indagou da criança onde tinha conseguido o dinheiro -e ela,
amedrontada, contou.
O homem chamou a mãe da
menina e mandou que sentasse numa cadeira, pusesse a criança no colo e
prendesse fortemente seus braços e suas pernas. Isso obedecido, ele pegou uma
colher de metal, aqueceu-a no fogão e queimou a mão da criança, como
"lição" para que não gastasse mais o dinheiro que encontrasse -sem
dúvida, uma lição de barbárie. Assim, durante os primeiros seis meses no
abrigo, essa criança teve que passar por curativos dolorosos na mão queimada.
Muitas outras crianças
tinham histórias parecidas. As surras, inclusive na cabeça, certamente se
refletiam no seu desempenho escolar -e, posteriormente, aos 18 anos, quando eram
novamente "despejadas" na vida, havia grande dificuldade para
arranjar emprego.
Já acompanho a vida
dessas crianças há 20 anos, quando participei da criação das Casas do Amparo,
associação sem fins lucrativos para abrigar crianças abandonadas.
Se existe uma grande
preocupação entre nós, é esta: apenas uma pequena parcela dessas crianças foi
adotada ao longo desse tempo.
Houve casais brasileiros
e europeus que conseguiram varar a rede intrincada de dificuldades e adotaram
algumas crianças nossas. Os italianos sempre foram mais pragmáticos, não se
importando com a cor e não se intimidando quando era necessário adotar dois ou
três irmãos juntos.
A maioria dos abrigados,
porém, não tinha essa sorte. Chegando à fase adulta, tinha de simplesmente
abrir a porta e ir embora. Da noite para o dia, despencavam na vida. Sem
amigos, sem boas referências, sem dinheiro, sem ter onde morar.
Acabavam em pensões
ordinárias. Em alguns casos, pagavam pela "hospedagem" com sexo. E
assim nossas moças repetiam a trajetória perversa das mães que as abandonaram.
Bebês nasceram; bebês foram largados. A roda do abandono não para de girar.
Isso significa que
abrigar é uma solução paliativa, que não resolve o problema. O melhor que pode
acontecer a uma dessas crianças de fato é um casal disposto a adotá-las. Mas a
adoção infelizmente não é garantia de solução. A devolução impensada de menores
mal adotados é o pior flagelo que um casal pode infligir a uma criança. Já
testemunhamos esse horror. O sentimento de rejeição acaba se transformando em
ódio à sociedade.
Por isso, seria
importante que governo ou sociedade civil apoiassem entidades que preparam
casais para adotar. É um trabalho de meses, com psicólogas e assistentes
sociais.
Conhecemos de perto o
trabalho de ONGs que fazem esse trabalho voluntariamente, como o Grupo de Apoio
à Adoção de São Paulo (Gaasp). Sua ajuda é de grande valia, mas a entidade vive
na penúria -as profissionais trabalham de graça, pagando do próprio bolso as
despesas do atendimento. ONGs são proibidas por lei de cobrar qualquer
pagamento pelo preparo adequado dos casais.
É preciso mais apoio
para que não desanimem dessa missão. A adoção bem-sucedida é o caminho para
transformar vítimas da omissão em seres humanos plenos e felizes.
LEON ALEXANDR, 85, engenheiro civil,
é fundador das Casas de Amparo e conselheiro vitalício do Secovi-SP (sindicato
da habitação de SP) e da associação A Hebraica
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