Equipe:


Aurélio Giacomelli da Silva - Promotor de Justiça

Letícia Titon Figueira - Assistente de Promotoria

Ana Paula Rodrigues Steimbach - Assistente de Promotoria

Mallu Nunes - Estagiária de Direito

Giovana Lanznaster Cajueiro - Telefonista

Mário Jacinto de Morais Neto - Estagiário de Ensino Médio




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

CELAS DA DELEGACIA DE PALHOÇA - ÍNTEGRA DA DECISÃO


AUTOS N. 045.12.000624-8



DECISÃO INTERLOCUTÓRIA



1. Tenho em mãos AÇÃO CIVIL PÚBLICA proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA em face do ESTADO DE SANTA CATARINA, SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA e SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA, na qual o autor requer que os réus sejam compelidos a reformar ou construir instalações apropriadas na Delegacia de Polícia de Palhoça, aptas a receber adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional.
2. Inicio fazendo um pequeno reparo de ordem processual na petição inicial.
As duas Secretarias de Estado arroladas no polo passivo não podem figurar como parte nesta ação, porque são órgãos públicos despersonalizados, frutos do fenômeno que Celso Antônio Bandeira de Mello chama de “desconcentração” (in Curso de Direito Administrativo. 11a ed. São Paulo, Malheiros Editores, 1999. Pág. 97). Ambas não passam de simples repartições que integram a estrutura administrativa do Estado de Santa Catarina e que dele não se distiguem.
Portanto, se alguma omissão existe no tocante à política pública voltada para o atendimento dos adolescentes em conflito com a lei, quem deve ser responsabilizado é o Estado de Santa Catarina, e não suas Secretarias.
É da jurisprudência:

“A Secretaria Municipal do Meio Ambiente é  parte ilegítima para integrar o pólo passivo de ação ordinária que visa à renovação de alvará de comércio ambulante, uma vez que, como ente despersonalizado, opera como mero agente da pessoa jurídica de direito público a qual pertence, no caso, o Município de Porto Alegre” (TJRS, Agravo interno n. 70031382690, da Comarca de Porto Alegre, rel. Des. João Carlos Branco Cardoso, j. em 02.09.2009).
 “PROCESSUAL CIVIL - ILEGITIMIDADE PASSIVA 'AD CAUSAM' - SECRETARIA DE ESTADO - ÓRGÃO DA ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL - AUSÊNCIA DE PERSONALIDADE JURÍDICA - INDEFERIMENTO DA INICIAL - APLICAÇÃO DO ART. 295, II, DO CPC. Sendo a Secretaria de Recursos Humanos e Administração órgão da Administração Pública Estadual, sem personalidade jurídica, não tem legitimidade para figurar no pólo passivo de ação judicial, já que não poderá arcar com os efeitos oriundos da sentença. Recurso a que se nega provimento” (TJMG, Ap. cível n. 000322824/00, da Comarca de Belo Horizonte, rel. Des. Kildare Carvalho, j. em 07.08.2003).


Por esses motivos, EXCLUO do polo passivo desta ação a SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA e a SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA.
3. A petição inicial traz em seu bojo pedido de antecipação de tutela.
O instituto da antecipação de tutela tem plena aplicabilidade no âmbito da ação civil pública, em face do que estabelecem os arts. 12 e 19 da Lei 7.347/85; arts. 84, §4º e 90 da Lei 8.078/90; e art. 273 do CPC.
Para que um pedido de antecipação de tutela tenha sucesso, deve haver prova inequívoca da verossimilhança das alegações feitas na inicial. Além disso, há que se verificar a existência de receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou caracterização do abuso do direito de defesa.
Examinando os autos, vejo que as alegações feitas na inicial são verossímeis.
Na Comarca de Palhoça, não existem entidades com as características definidas no art. 123 do ECA, destinadas a receber adolescentes infratores.
Em razão disso, os adolescentes que são apreendidos aqui costumam aguardar sua remoção para outros locais no Estado, permanecendo em repartição policial por até cinco dias, conforme faculta o art. 185, §2o, do ECA.
Sucede que a única Delegacia de Polícia existente em Palhoça não possui espaço apropriado para receber menores infratores. É o que infiro do ofício de fls. 104/106, redigido pela Delegada Regional de Polícia, Dra. Gisele de Faria Jerônimo:

“(...) a Delegacia de Polícia da Comarca de Palhoça possui sérias limitações físicas e dispõe de uma única cela que já foi interditada pelo Judiciário local em face de sua precária condição.
Desde 23 de dezembro de 2010 os presos permanecem na cela da Delegacia somente nos horários em que a Central de Triagem da Capital, por medida de segurança, deixa de receber os mesmos.
No setor destinado ao atendimento ao público, que chamamos de Comissariado, foi desativado um depósito e criada uma “sala de contenção” onde permanecem aquelas pessoas conduzidas até a lavratura do procedimento e posterior encaminhamento para a Central de Triagem ou mesmo para permanência na cela da Delegacia até ser efetivada a sua transferência.
Nesse espaço permanecem os adolescentes até a concessão da vaga para sua transferência.
Referido local já foi alvo de críticas por parte do público interno e externo, uma vez que a permanência de pessoas no local acaba por gerar ruído e odores tornando o local totalmente insalubre para aqueles que ali trabalham e aqueles que são atendidos na Delegacia.
Em resumo, Senhor Promotor, a Delegacia de Palhoça não possui espaço adequado para manter presos, sejam adultos ou adolescentes. Todo o possível é feito para dar cumprimento as determinações legais, porém não há outro local para se manter adolescentes senão a sala de contenção anexo ao Plantão da Delegacia” (fls. 104/105).

No parecer lavrado pela assistente social Gizelly Rodrigues (fls. 107/113), ficou esclarecido que os adolescentes costumam aguardar sua transferência em duas celas distintas, ambas com aspectos insalubres, pouca ventilação, mofo nas paredes, sendo que, numa dessas celas, sequer há banheiro ou local para sentar ou deitar. Segundo a referida profissional, “(...) a reclusão de adolescentes naquele ambiente pode apresentar riscos ao processo de desenvolvimento e principalmente de recuperação dos mesmos” (fl. 108).
O parecer da Vigilância Sanitária do Município de Palhoça segue no mesmo tom. Colho do relato de inspeção:

“(...) um acúmulo de detentos num pequeno espaço com pouca circulação de ar agrava a situação de risco de transmissão de doenças causadas por fungos, como micoses, doenças respiratórias. Cito também o risco de contrair tuberculose caso haja um doente bacilífero entre os demais.
As paredes e o teto necessitam de pintura, o banheiro não oferece condições satisfatórias de higiene, é recomendado também colchões com revestimento impermeável. Percebemos que é difícil manter um ambiente livre de umidade, pois há apenas uma entrada de ar, isso dificulta a circulação. Na parte interna da delegacia há um local também destinado a reclusão. Porém, também não oferece condições satisfatórias de higiene, já que aparentemente o que era um corredor foi transformado em uma pequena cela sem banheiro e cama. Quando nos referimos a parte de alimentação (...) isso também pode se tornar um problema pela má conservação dos alimentos e/ou restos de alimentos deixados no local causando um surto de vetores.
Sendo assim, considerando as normas sanitárias vigentes e o manual de orientações sobre as normas sanitárias do sistema carcerário, verificamos que os locais citados, oferecidos como cela de detenção continuam em "desacordo" com a legislação sanitária (fls. 122/123)”

Mais impressionante ainda é o relato feito pelo adolescente apreendido nos autos n. 045.12.000737-6, o qual ficou detido na Delegacia de Polícia de Palhoça por alguns dias, aguardando transferência para uma entidade educacional. Esse relato consta na petição inicial, fls. IX, mas o repriso abaixo, porque dá a exata dimensão da gravidade do caso em pauta:

"[...] 10:01 - Promotor de Justiça: você foi apreendido quando?
Adolescente: sábado;
Promotor de Justiça: você está desde sábado lá. Hoje é quarta-feira; Você tomou banho quantas vezes lá na cela?
Adolescente: uma vez só... eu pedia todo dia, não sou porco... Tomava banho todo dia em casa, como qualquer pessoa normal;
[...]
10:37 - Promotor de Justiça: você está em que cela ali? Tem uma cela dentro e a outra do lado de fora.
Adolescente: agora eu estava na cela do lado do escrivão da Palhoça, mas eu estava na cela que os presos estavam. Os presos maiores...
Eu só comi junto com eles; fiquei uns 20 ou 30 minutos...
Promotor de Justiça: ficasse 20 ou 30 minutos então com os maiores?
Adolescente: Sim... na cela onde ficam os presos;
Promotor de Justiça: Como está esta cela lá? Muito complicado de ficar ali?
Adolescente: eu não queria nem que o meu cachorro lá de casa ficasse naquela cela; Até meu cachorro vive melhor.
Promotor de Justiça: Mas por quê?
Adolescente: mau cheiro, não tem bacil para o cara fazer as necessidades...
Promotor de Justiça: Como fizesse as suas necessidades?
Adolescente: eu nem fiz, só mijei.
Promotor de Justiça:como você urinou?
Adolescente: tem um buraquinho que desce a água... na cela de dentro urinei num litrinho de refrigerante 13:07 [...]"
[...] (Transcrição de depoimento, em Juízo, prestado por adolescente Representado nesta Comarca de Palhoça e apreendido na Delegacia de Polícia deste Município. Autos n. 045.12.000737-6. Data: 25/01/2012).

Como se vê, os adolescentes detidos na Delegacia de Palhoça estão sendo privados de direitos básicos, pois ficam sem tomar banho durante longo período e não conseguem acessar o banheiro para fazer suas necessidades com a frequência necessária. Ainda são obrigados a permanecer em ambiente com odor insuportável de urina, na qual há risco de proliferação de doenças infectocontagiosas, em razão da ventilação insuficiente, da falta de higiene e da iluminação escassa.
Não bastasse isso, há ocasiões em que os adolescentes são colocados juntos com pessoas adultas, o que fere de morte o disposto no art. 185, §2o, do ECA.
Essa situação calamitosa já é de conhecimento do Estado de Santa Catarina. Em novembro de 2010, a cadeia situada na Delegacia de Polícia de Palhoça foi interditada pelo Juízo da 2a Vara Criminal desta Comarca, porque considerada inapta para acolher os presos da região (vide decisão de fls. 71/74). O Estado, embora tenha sido notificado a respeito desta decisão, não tomou providência. Nenhuma reforma foi feita.
Se essa cadeia não oferece condições dignas para receber pessoas maiores de idade, é evidente que também não pode servir para acolher adolescentes infratores.
Neste cenário, resta mais que clara a omissão do Estado de Santa Catarina. Os adolescentes da Comarca de Palhoça estão recebendo tratamento que ofende sua dignidade, porque o Estado nega-se a respeitar os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, deixando de investir o mínimo necessário para ter celas capazes de abrigar infratores.
A omissão do Estado de Santa Catarina viola, de uma só vez, os seguintes dispositivos da Constituição Federal de 1988: art. 1o, inciso III; art. 5o, incisos III e XLIX; e art. 227, caput, e §3o, inciso V. Também estão sendo ofendidos os arts. 3o, 4o, 5o, 6o, 18 e 124, incisos V, IX e X, todos do ECA.
O Poder Judiciário não pode ficar inerte frente a este quadro. Configurada a omissão estatal, o magistrado tem o dever de combatê-la, fazendo o Poder Executivo lembrar que a Constituição Federal de 1988 ainda existe e precisa ser respeitada. É o que ensina Américo Bedê Freire Júnior:

“(...) em regra, o Executivo e o Legislativo devem proporcionar a efetivação da Constituição; contudo, quando tal tarefa não foi cumprida, não pode o juiz ser co-autor da omissão e relegar a Constituição a um nada jurídico.
Corroborando a função subsidiária do juiz na implementação das políticas públicas, Oswaldo Palu pontifica: ‘No Estado Democrático de Direito, a questão da escolha de prioridades cabe a um legislador democraticamente eleito e, em nosso sistema presidencialista, a um governo democraticamente eleito, que, como sabemos, trata-se do executivo e sua base de apoio parlamentar. E somente em casos de desvios erráticos ou de uma passividade arbitrária ante casos evidentes de situações precárias cabe uma correção, constitucionalmente fundada aos atos de governo’.
Não existe discricionariedade na omissão do cumprimento da Constituição. Na verdade, trata-se de arbitrariedade que pode e precisa ser corrigida.
Ademais, a Constituição prevê em seu art. 5o, XXXV, peremptoriamente que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Uma interpretação adequada do dispositivo leva à conclusão de que não somente a lei, mas também atos, inclusive omissivos, do Poder Legislativo e Executivo não podem ficar sem controle” (FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. 1a ed. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2005. Págs. 70/71).

Sobre o tema do controle judicial das omissões do Poder Público, cito o seguinte julgado do STF:

“(...) se o Estado deixar de adotar medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a insconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo poder Público (...). As situações configuradas de omissão insconstitucional – ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário – refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário” (STF, ADI 1.458 MC/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. em 23.05.1996).

E nem se diga que a omissão do Estado de Santa Catarina seria justificável pela falta de recursos financeiros. Estamos tratando de direitos dos adolescentes, os quais gozam de proteção integral e devem ser garantidos com absoluta prioridade pelo Poder Público (art. 227 da CF/88 e arts. 3o e 4o do ECA). Não pode alegar falta de recursos um Estado que investe milhões de reais em propaganda do governo e deixa em último plano a reserva de verbas para concretizar os direitos dos adolescentes. Inaplicável aqui, portanto, a chamada “cláusula da reserva do possível”.
Volto a buscar amparo na jurisprudência do STF para fundamentar minha decisão:

“CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO  CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191- -197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO
JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ  175/1212-1213 – RTJ 199/1219- -1220). RECURSO EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO” (STF, RE 482.611/SC, Decisão Monocrática, rel. Min. Celso de Mello, j. em 23.03.2010).

Importante frisar que o pedido de reforma das celas é algo que pode ser facilamente atendido pelo Estado de Santa Catarina, sem que haja comprometimento do orçamento público. Não se está exigindo neste processo a edificação de uma obra de grande porte, altamente custosa, mas sim a simples adequação de um espaço destinado a receber adolescentes infratores.
Justo, pois, que o pleito de antecipação de tutela articulado pelo Ministério Público seja acolhido. As alegações feitas na inicial são verossímeis. De outro lado, há risco de dano irreparável. As celas precisam ser melhoradas imediatamente, sob pena da dignidade dos adolescentes que lá permanecem, ainda que durante um breve período de tempo, continue sendo violentada.
Estou deferindo o pedido de antecipação de tutela, sem a prévia oitiva do Estado de Santa Catarina, porque entendo que o caso sob exame é excepcional. A omissão de que trato aqui é gravíssima, pois vem acarretando a violação de direitos humanos de adolescentes em conflito com a lei. Portanto, não há tempo a perder.
Sobre a possibilidade de deferimento de liminar em ação civil pública, sem prévia oitiva do Estado, vale conferir o seguinte precedente:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCESSÃO DE LIMINAR SEM OITIVA DO PODER PÚBLICO. ART. 2° DA LEI 8.437/1992. AUSÊNCIA DE NULIDADE.
1. O STJ, em casos excepcionais, tem mitigado a regra esboçada no art. 2º da Lei 8437/1992, aceitando a concessão da Antecipação de Tutela sem a oitiva do poder público quando presentes os requisitos legais para conceder medida liminar em Ação Civil Pública.
2. No caso dos autos, não ficou comprovado qualquer prejuízo ao agravante advindo do fato de não ter sido ouvido previamente quando da concessão da medida liminar .
3. Agravo Regimental não provido”. (STJ, AgRg no AI 1.314.453/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. em 21.09.2010).

O argumento da irreversibilidade também não pode obstar o deferimento da antecipação de tutela buscada pelo Ministério Público. Como bem destacou o Desembargador Jaime Ramos, membro do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento n. 2011.039816-7, “a legislação que rege a matéria deve ser interpretada sob a ótica da proporcionalidade no sentido da possibilidade da concessão da tutela antecipada, ainda que irreversível a medida, quando for absolutamente necessário obrigar o Poder Público a satisfazer, de modo excepcional, obrigação de proporcionar à população os direitos básicos assegurados na Carta Magna”.
Com essas considerações, DEFIRO o pleito de antecipação de tutela constante na inicial, para:
(A) PROIBIR, imediatamente, o ingresso e permanência de adolescentes apreendidos por atos infracionais na “sala de contenção” e celas localizadas na Delegacia de Polícia de Palhoça;
(B) PROIBIR, imediatamente, que adolescentes apreendidos pela prática de atos infracionais nesta comarca permaneçam na mesma seção que adulto segregado, nos termos do art. 185, § 2o, do ECA;
(C) DETERMINAR que o réu providencie, por meio de reforma, construção ou outra forma cabível, no prazo de 90 dias, instalações apropriadas na Delegacia de Polícia de Palhoça para alocar os adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional, nos moldes do art. 185, §2o, do ECA, observando as diretrizes da Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemológica, do Corpo de Bombeiros Militar, bem como de outras entidades fiscalizadoras;
(D) ORDENAR que o réu providencie, imediatamente, repartição com instalações apropriadas, de acordo com o item anterior, em seção isolada dos adultos, localizada na região da Grande Florianópolis/SC, para encaminhar os adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional no Município de Palhoça, até que seja providenciada repartição policial adequada nesta Comarca, conforme descrito no item anterior, aplicando-se analogicamente, o disposto no art. 185, §2o, do ECA;
(E) ORDENAR que o réu informe, no prazo de 10 dias, para onde serão encaminhados os adolescentes apreendidos na prática de ato infracional no período de transição citado no item acima, bem como no que consistirá a adequação (reforma, construção etc) dos espaços destinados aos adolescentes na Delegacia de Polícia de Palhoça.
4. Considerando que no item “C” acima foi estabelecida obrigação de fazer, nada impede que seja fixada uma multa cominatória para coagir o Estado a realizar a adequação necessária nas celas da Delegacia de Polícia de Palhoça. Tal multa encontra respaldo nos arts. 287 e 461 do CPC, bem como no art. 11 da Lei 7.347/85.
Definindo o alcance do art. 11 da Lei 7.347/85, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que a multa “(...) pode ser direcionada não apenas ao ente estatal, mas também pessoalmente às autoridades e aos agentes responsáveis pelo cumprimento das determinações judiciais” (STJ, REsp 1111562/RN, rel. Min. Castro Meira, j. em 25.08.2009). A única exigência que se faz, para que a multa seja destinada às autoridades responsáveis pelo adimplemento da obrigação de fazer, é que as mesmas sejam notificadas, de alguma forma, para se manifestarem nos autos, de maneira que possam exercer os direitos ao contraditório e à ampla defesa.
No bojo do acórdão lavrado nos Edcl no REsp 1111562/RN, o Ministro Castro Meira deixou consignado que essa notificação da autoridade deve ser realizada antes da tomada da decisão liminar. Neste ponto, peço vênia para discordar. Se o próprio STJ entende que em casos excepcionais a liminar na ação civil pública pode ser deferida sem a oitiva da parte contrária, não vejo problema em estabelecer a multa cominatória destinada à autoridade pública inaudita altera pars. Como bem ponderado pelo Desembargador do TJSC, Luiz Cézar Medeiros, no voto proferido no Agravo de Instrumento n. 2011.006614-3, “nada impede que a autoridade pública venha posterimente aos autos comunicar ao Juízo a existência de situação excepcional impeditiva da obediência do comando judicial, no interregno nele fixado, sem afrontar, por conseguinte, os seu direito ao contraditório e à ampla defesa”.
Isto posto, FIXO multa cominatória, no valor de R$ 1.000,00 para cada dia de atraso (R$ 500,00 para cada secretário), destinada ao Secretario de Estado da Segurança Pública, Senhor César Augusto Grubba, e à Secretária de Estado da Justiça e Cidadania, Sra. Ada Faraco de Luca, a fim de persuadir ambos a tomarem as providências necessárias no sentido de tirar o Estado de Santa Catarina de sua inércia e fazê-lo cumprir a obrigação de fazer estabelecida no item “C” da página n. 10 desta decisão.
Tal multa será descontada diretamente da folha de pagamento dos citados secretários, sendo revertida em favor do FIA – Fundo da Infância e Juventude de Palhoça.
5. CITE-SE o réu (via oficial da infância e juventude), na pessoa do Procurador Geral do Estado, para, se desejar, ofertar defesa, no prazo legal (art. 297 c/c art. 188 do CPC).
6. NOTIFIQUEM-SE, pessoalmente (via oficial da infância e juventude), o Secretario de Estado da Segurança Pública, Senhor César Augusto Grubba, e a Secretária de Estado da Justiça e Cidadania, Sra. Ada Faraco de Luca, para, se desejarem, apresentar defesa, na condição de terceiros interessados, no mesmo prazo estabelecido no item “5” acima.
7. NOTIFIQUE-SE o Delegado Regional (via oficial da infância e juventude), responsável pela Delegacia de Polícia de Palhoça, para que cumpra as determinações contidas nos itens “A” e “B” de fl. 10 desta decisão.
8. NOTIFIQUE-SE o DEASE (via oficial da infância e juventude), na pessoa do Gerente Roberto Augusto Carvalho Lajus, para que tome conhecimento desta decisão.
9. INTIMEM-SE e CUMPRA-SE, com urgência.
Palhoça (SC), 24 de fevereiro de 2012.

André Augusto Messias Fonseca
Juiz de Direito




CELAS DA DELEGACIA DE POLÍCIA DE PALHOÇA - DEFERIDO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

foto meramente ilustrativa que não se trata de cela da Delegacia de Palhoça


Foi publicada a decisão que deferiu a antecipação de tutela requerida pela 1ª Promotoria de Justiça de Palhoça na Ação Civil Pública n. 045.12.000624-8, para que o Estado de Santa Catarina efetue, no prazo de 90 (noventa) dias, a adequação das instalações na Delegacia de Polícia, para apreensão de adolescentes em conflito com a lei, proibindo-se, inclusive, de forma imediata, o ingresso e permanência de adolescentes nesses locais ou ainda em outros compartimentos com pessoas adultas. 

Além disso, foi determinado que imediatamente o Estado de Santa Catarina providencie repartição com instalações adequadas, em seção isolada dos adultos, localizada na região da Grande Florianópolis até que as reformas na Delegacia de Polícia de Palhoça sejam efetuadas. Este local deverá ser informado no prazo de 10 (dez) dias.

Ademais, foi fixada multa cominatória, no valor de R$ 1.000,00 para cada dia de atraso (R$ 500,00 para cada secretário), destinada ao Secretário de Estado da Segurança Pública, Senhor César Augusto Grubba, e à Secretária de Estado da Justiça e Cidadania, Sra. Ada Faraco de Luca, a fim de persuadir tais gestores a "tomarem as providências necessárias no sentido de tirar o Estado de Santa Catarina de sua inércia e fazê-lo cumprir a sua obrigação."

O Juiz de Direito André Augusto Messias Fonseca, da Vara da Infância e Juventude de Palhoça, colocou em sua brilhante decisão que:

"(...) os adolescentes detidos na Delegacia de Palhoça estão sendo privados de direitos básicos, pois ficam sem tomar banho durante longo período e não conseguem acessar o banheiro para fazer suas necessidades com a frequência necessária. Ainda são obrigados a permanecer em ambiente com odor insuportável de urina, na qual há risco de proliferação de doenças infectocontagiosas, em razão da ventilação insuficiente, da falta de higiene e da iluminação escassa.
Não bastasse isso, há ocasiões em que os adolescentes são colocados juntos com pessoas adultas, o que fere de morte o disposto no art. 185, §2o, do ECA."

A responsabilidade é do Estado de Santa Catarina, esclarecendo-se que a Polícia Civil de Palhoça, apesar de tantas dificuldades de estrutura e de trabalho, sempre procurou fazer o máximo para que os direitos dos adolescentes fossem preservados.

Mais informações sobre a ação civil pública ajuizada, acesse aqui e aqui.

Desta decisão ainda cabe recurso.

No próximo post, segue a íntegra da decisão.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Drauzio Varella - Superpopulação Carcerária

Patricia Santos - Folha Imagem




O lema "lugar de bandido é na cadeia" é vazio e demagógico. Não temos prisões suficientes



As fábricas de ladrões e traficantes jogam mais profissionais no mercado do que sonha nossa vã pretensão de aprisioná-los.

Levantamento produzido pela Folha, com base nos censos realizados nas 150 penitenciárias e nas 171 cadeias públicas e delegacias de polícia, mostra que o Estado de São Paulo
precisaria construir imediatamente mais 93 penitenciárias, apenas para reduzir a superlotação atual e retirar os presos detidos em delegacias e cadeias impróprias para funcionar como presídios.


Para Lourival Gomes, o atual secretário da Administração Penitenciária, cuja carreira acompanho desde os tempos do Carandiru, profissional a quem não faltam credenciais técnicas e a experiência que os anos trazem, o problema da falta de vagas não será resolvido com a construção de prisões.

Tem razão, é guerra perdida: no mês passado, o sistema prisional paulista recebeu a média diária de 121 novos detentos, enquanto foram libertados apenas 100. Ficaram encarcerados 21 a mais todos os dias. 


Como os presídios novos têm capacidade para albergar 768 detentos, seria necessário construir mais um a cada 36 dias, ou seja, 10 por ano.

Esse cálculo não leva em conta o aprimoramento técnico da polícia. Segundo o mesmo levantamento, a taxa de encarceramento, que há oito meses era de 413 pessoas para cada 100 mil habitantes, aumentou para 444. Se a PM e a Polícia Civil conseguissem prender marginais com a eficiência dos policiais americanos (743 para cada 100 mil habitantes), seria preciso construir uma penitenciária a cada 21 dias. 

Agora, analisemos as despesas. A construção de uma cadeia consome R$ 37 milhões, o que dá perto de R$ 48 mil por vaga. Para criar uma única vaga gastamos mais da metade do valor de uma casa popular com sala, cozinha, banheiro e dois quartos, por meio da qual é possível retirar uma família da favela.

Esse custo, no entanto, é irrisório quando comparado aos de manutenção. Quantos funcionários públicos há que contratar para cumprir os três turnos diários? Quanto sai por mês fornecer três refeições por dia? E as contas de luz, água, material de limpeza, transporte, assistência médica, jurídica e os gastos envolvidos na administração?

Não sejamos ridículos, caro leitor. Se nossa polícia fosse bem paga, treinada e aparelhada de modo a mandar para atrás das grades todos os bandidos que nos infernizam nas ruas, estaríamos em maus lençóis. Os recursos para mantê-los viriam do aumento dos impostos? Dos cortes nos orçamentos da educação e da saúde?

Então, o que fazer? É preciso agir em duas frentes. A primeira é tornar a Justiça mais ágil, de modo a aplicar penas alternativas e facilitar a progressão para o regime semiaberto, no caso dos que não oferecem perigo à sociedade, e colocar em liberdade os que já pagaram por seus crimes, mas que não têm recursos para contratar advogado.

A segunda, muito mais trabalhosa, envolve a prevenção. Sem diminuir a produção das fábricas de bandidos, jamais haverá paz nas ruas. Na periferia de nossas cidades, milhões de crianças e adolescentes vivem em condições de risco para a violência. São tantas que é de estranhar o pequeno número que envereda pelo crime.

Nossa única saída é oferecer-lhes qualificação profissional e trabalho decente, antes que sejam cooptados pelos marginais para trabalhar em regime de semiescravidão.

Há iniciativas bem-sucedidas nessa área, mas o número é tímido diante das proporções da tragédia social. É necessário um grande esforço nacional que envolva as diversas esferas governamentais e mobilize a sociedade inteira.


Como parte dessa mobilização, é fundamental levar o planejamento familiar para os estratos sociais mais desfavorecidos. Negar-lhes o acesso à lei federal que lhes dá direito ao controle da fertilidade é a violência mais torpe que a sociedade brasileira comete contra a mulher pobre.

O lema "lugar de bandido é na cadeia" é vazio e demagógico. Não temos nem teremos prisões suficientes. Reduzir a população carcerária é imperativo urgente. Não cabe discutir se estamos a favor ou contra, não existe alternativa. Empilhar homens em espaços cada vez mais exíguos, não é mera questão de direitos humanos, é um perigo que ameaça todos nós. Um dia eles voltarão para as ruas.



Publicado no Jornal Folha de São Paulo de hoje. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Liminar determina que Florianópolis elimine filas de espera no Sentinela




Liminar concedida em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) determinou que o Município de Florianópolis apresente em 20 dias um cronograma para eliminar, até no máximo 31 de dezembro de 2012, qualquer fila de espera para atendimento no Programa Sentinela. As medidas necessárias devem ser implementadas em até 60 dias, contados a partir da apresentação do cronograma.

O número de casos de crianças e adolescentes em situação de risco que esperam pelo atendimento foi o que levou a 9ª Promotoria de Justiça da Comarca da Capital - com atuação na área da infância e juventude - a ajuizar a ação civil pública contra o Município de Florianópolis: em novembro de 2011 eram 918 casos de crianças e adolescentes expostos a negligência, violência física e violência sexual sem qualquer atendimento psicossocial pelo Programa Sentinela.

De acordo com a Promotora de Justiça Cristiane Rosália Maestri Böell, o objetivo da ação é exigir judicialmente a contratação de profissionais e o aparelhamento do Sentinela a fim de que seja atendida a demanda reprimida. Em novembro de 2011 eram 337 casos aguardando diagnóstico e 581 esperando pelo acompanhamento psicossocial necessário.

Quando do ajuizamento da ação, o corpo técnico do Programa Sentinela era composto por dez assistentes sociais, sete psicólogos, quatro servidores administrativos e nove estagiários 
- que formam as oito equipes existentes - realizando diagnóstico de 94 casos e atendimento psicossocial em 109 famílias, por período, geralmente, de dois anos.

Com a carência de recursos humanos e precariedade material, os casos encaminhados pelo Conselho Tutelar - que, muitas vezes, dizem respeito a mais de uma criança e/ou adolescente em situação de risco - não são imediatamente diagnosticados e, após até anos de espera, há mais um longo período aguardando para inclusão nos atendimentos de acompanhamento.

A medida liminar concedida pelo Juízo da Infância e Juventude da Comarca da Capital determina que o Município de Florianópolis implemente e execute, imediatamente, todas as medidas necessárias para garantir o fortalecimento e estruturação pessoal e material do Programa Sentinela em 60 dias, sob pena de multa diária de 100 salários mínimos a ser revertida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Cabe recurso da decisão ao Tribunal de Justiça. (ACP nº 023.11.057769-0)

Redação: Coordenadoria de Comunicação Social do MPSC

É importante relembrar, que em ação civil pública ajuizada pela 1ª Promotoria de Justiça de Palhoça, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina assim já decidiu com relação ao CREAS:

Agravo de Instrumento n. 2011.046221-1, de Palhoça, Relator: Des. Newton Janke

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INFÂNCIA E JUVENTUDE. PROGRAMAS SOCIAIS DE LIBERDADE ASSISTIDA E DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE RISCO. FILAS DE ESPERA PARA ATENDIMENTO. NECESSIDADE DE EXPANSÃO. NOMEAÇÃO DE NOVOS SERVIDORES E MELHORIAS NA ESTRUTURA FÍSICA. (...)

Mais informações aqui

Ilustração extraída do doisterços.com.br


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Medidas socioeducativas em meio aberto - instaurado inquérito civil


Na data de hoje foi instaurado inquérito civil para se fazer um diagnóstico sobre o Serviço de Execução de Medidas Socioeducativas em meio aberto de Palhoça.

A execução das medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade) aos adolescentes em conflito com a lei é uma obrigação dos Municípios, enquanto que as medidas privativas de liberdade (semiliberdade e internação) são de responsabilidade dos Estados.

A garantia de prioridade no atendimento prevista no ECA também se estende aos adolescentes que praticam atos infracionais, para os quais o artigo 228 da Constituição Federal, em conjugação com os artigos 103 a 125 da Lei n° 8.069/90, estabelece um tratamento diferenciado e especializado, tendo como objetivo o fortalecimento da convivência familiar e comunitária.

Apesar do grande esforço e da qualidade do trabalho das dedicadas técnicas do CREAS na execução de medidas socioeducativas, o programa apresenta diversas carências, que serão analisadas neste inquérito civil (n. 06.2012.00001185-4/).

Segue abaixo o texto da portaria de instauração:



PORTARIA N. 06.2012.00001185-4/001

Objeto: diagnóstico da situação dos programas/serviços de execução de medidas socioeducativas em meio aberto no Município de Palhoça .


CONSIDERANDO que o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei nº 8.069/90, definiu em seu artigo 86 que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
CONSIDERANDO que as diretrizes propostas no Sistema Nacional Socioeducativo  SINASE, aprovado pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente  CONANDA, reafirma o compromisso dos municípios com a execução das medidas socioeducativas em meio aberto; 

CONSIDERANDO a necessidade de observância dos princípios da descentralização, desjudicialização, integração e municipalização do atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, resultantes ao artigo 204, inciso I, da Constituição da República, bem como do artigo 88, incisos I, II, III e V, artigo 86 e artigo 90 da Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente;

CONSIDERANDO a necessidade de implementação de uma efetiva política municipal de proteção aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei, nos moldes do previsto pela Lei Federal n° 8.069/90; SINASE  Sistema de Atendimento Socieducativo e SUAS  Sistema Único de Assistência Social (Lei Federal n. 12.435/11), em atendimento ao disposto nos artigos 226, 227 e 204, todos da Constituição Federal;

CONSIDERANDO que é dever do Poder Público, conforme disposto no artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 4°, caput e parágrafo único, da Lei n° 8.069/90, assegurar a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, dentre outros direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (conforme artigo 3° da Lei nº 8.069/90);

CONSIDERANDO que na forma do disposto no artigo 4°, parágrafo único, alíneas “b” e “d”, da Lei n° 8.069/90, a garantia de prioridade compreende, dentre outros fatores, a precedência de atendimento nos serviços públicos e de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à criança e ao adolescente, o que importa na previsão de verbas orçamentárias para fazer frente às ações e programas de atendimento voltados à população infantojuvenil (conforme inteligência dos artigos 88, inciso II; 90; 101; 112; 129 e 259, parágrafo único, todos da Lei n° 8.069/90);

CONSIDERANDO que a aludida garantia de prioridade também se estende aos adolescentes que praticam atos infracionais, para os quais o artigo 228 da Constituição Federal, em conjugação com os artigos 103 a 125 da Lei n° 8.069/90, estabelece um tratamento diferenciado e especializado;

CONSIDERANDO que, na forma do disposto no artigo 88, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente, a municipalização se constitui na diretriz primeira da política de atendimento à criança e ao adolescente, sendo também relativa à criação e implementação de programas destinados a adolescentes autores de atos infracionais, notadamente aqueles que visam tornar efetivas e/ou dar suporte à execução das medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida;

CONSIDERANDO a necessidade de reintegração dos adolescentes em conflito com a lei em suas famílias e comunidades, conforme preconizado pelo SINASE e pelo Plano Nacional de  Promoção,  Proteção  e  Defesa  do  Direito  de  Crianças  e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC);

CONSIDERANDO que um dos objetivos precípuos das medidas socioeducativas em meio aberto é, justamente, segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Resolução CNAS nº 109/2009), o fortalecimento da convivência familiar e comunitária; e sendo tais medidas, portanto, quando comparadas às restritivas de liberdade, as mais compatíveis com a manutenção e reintegração dos vínculos sociofamiliares, assim como com o atendimento à saúde mental infantojuvenil em base comunitária e extra-hospitalar, conforme definido pela Lei nº 10.216/2001.

CONSIDERANDO as atuais carências de estrutura física, de recursos humanos e de vagas nas unidades de semiliberdade e de internação socioeducativa catarinenses, associados à necessidade do estabelecimento de justa correspondência entre atos infracionais de menor gravidade e medidas socioeducativas, fatores que demonstram em conjunto a necessidade imperiosa de investimentos para a constituição de um eficaz sistema socioeducativo em meio aberto.

CONSIDERANDO no Fórum Estadual de Juízes, Promotores de Justiça e Técnicos do Poder Judiciário e do Ministério Público de Santa Catarina, realizado na cidade de Joinville, nos dias 31 de agosto e 1º e 2 de setembro do corrente ano, foi deliberado, por unanimidade, pelos participantes do evento acerca da necessidade de instauração de um Inquérito Civil, a fim de diagnosticar a situação, em todos os municípios do Estado de Santa Catarina, dos programas de execução de medidas socieducativas em meio aberto;

CONSIDERANDO que a inexistência de tais programas especializados no atendimento de adolescentes acusados da prática infracional, assim como a insuficiência e inadequação das estruturas e serviços municipais para fazer frente à demanda apurada, têm prejudicado os encaminhamentos efetuados pela Justiça da Infância e Juventude, comprometendo assim a solução dos problemas detectados, com prejuízo direto não apenas aos adolescentes e suas famílias, que deixam de receber o atendimento devido, mas a toda sociedade;

CONSIDERANDO que é de responsabilidade dos municípios a implementação dos programas de atendimento em meio aberto, destinados a adolescentes incursos na prática de ato infracional e suas respectivas famílias, correspondentes às medidas socioeducativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, previstas no artigo 112, incisos III e IV, da Lei n° 8.069/90, competindo aos Estados (entes federados) a implementação dos programas correspondentes às medidas socioeducativas privativas de liberdade, relacionadas no artigo 112, incisos V e VI, do mesmo Diploma Legal, bem como prestar o devido auxílio para que os municípios implementem as medidas socioeducativas em meio aberto;

CONSIDERANDO que a criação e a manutenção de tais programas é parte intrínseca da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente e da rede municipal de proteção infantojuvenil, destinada a proporcionar-lhes a devida proteção integral, na forma do disposto no artigo 1º da Lei n° 8.069/90;

CONSIDERANDO que o não oferecimento ou a oferta irregular dos programas e ações de governo acima referidos, na forma do disposto nos artigos 5°; 98, inciso I, e 208, incisos I, VII, VIII e parágrafo único, todos da Lei n° 8.069/90, correspondem a efetiva violação dos direitos dos adolescentes submetidos a medidas socioeducativas, podendo acarretar a responsabilidade das autoridades públicas encarregadas, sem prejuízo da adoção de medidas judiciais, conforme previsto nos artigos 212, 213 e 216, do mesmo Diploma Legal;

CONSIDERANDO que ao Ministério Público foi dada legitimação ativa para a defesa judicial e extrajudicial dos interesses e direitos atinentes à infância e juventude, conforme artigos 127 e 129, inciso II, alínea “m”, da Constituição Federal e arts. 201, incisos V e VIII, e 210, inciso I, da Lei n° 8.069/90;

CONSIDERANDO que no Fórum Estadual de Juízes, Promotores de Justiça e Técnicos do Poder Judiciário e do Ministério Público de Santa Catarina, realizado na cidade de Joinville, nos dias 31 de agosto e 1º e 2 de setembro do corrente ano, foi deliberado, por unanimidade, pelos participantes do evento acerca da necessidade de instauração de um Inquérito Civil, a fim de diagnosticar a situação, em todos os municípios do Estado de Santa Catarina, dos programas de execução de medidas socieducativas em meio aberto;

CONSIDERANDO, finalmente, a necessidade de o Município de Palhoça adequar seus órgãos, programas, estruturas e orçamento às disposições da legislação federal;

RESOLVE, com fundamento nos artigos 37, caput, 127, caput, 129, II e III, e 227, todos da Constituição Federal, artigos 1º, 3º e 5º, 201, VI, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente, instaurar INQUÉRITO CIVIL para a devida apuração dos fatos, objetivando a colheita de dados, documentos, esclarecimentos, a fim de diagnosticar no Município de Palhoça as condições de funcionamento dos programas/serviços das medidas socioeducativas em meio aberto, adotando-se, ao final, a medidas pertinentes. 

Considerando o acima exposto, DETERMINA-SE o cumprimento das seguintes diligências:

01. A autuação desta portaria e dos documentos recebidos como Inquérito Civil Público;

02. A elaboração de extrato de instauração com os dados deste procedimento, de acordo com o modelo constante no Anexo I, do Ato n. 81/2008/PGJ;

03. A remessa do extrato referido no item anterior, por meio eletrônico, ao e-mail DiarioOficial@mp.sc.gov.br, no formato determinado pelos Atos n. 81/2008/PGJ e 323/2008/PGJ; 

04. A Remessa de cópia da presente portaria, por e-mail, ao Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (cij@mp.sc.gov.br), em cumprimento ao disposto no artigo 22 do Ato n. 81/2008/PGJ;

05. A afixação desta portaria no local de costume.

06. Oficie-se ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) do Município de Palhoça, com cópia da presente Portaria para ciência, a fim de que informe, no prazo de 15 (quinze) dias, se há o registro do programa desenvolvido diretamente pelo Município (CREAS) visando a execução das medidas socioeducativas em meio aberto impostas a adolescentes;

07. Diante do Termo de Cooperação Técnica firmado entre o Ministério Público e o Poder Judiciário, solicite-se ao Juiz da Vara da Infância e Juventude que providencie perante o respectivo cartório informações, especificamente de cada um dos últimos doze meses, acerca do número de medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade aplicadas judicialmente (por sentença homologatória ou de mérito) na Comarca de Palhoça;

08. Oficie-se à Delegacia de Polícia para que informe o número de Boletins de Ocorrência Circunstanciados pendentes de conclusão e encaminhamento ao Poder Judiciário;

09. Oficie-se ao Prefeito do Município, com cópia da presente Portaria, dando ciência da instauração deste Inquérito Civil, requisitando que informe, no prazo de 30 (trinta) dias;

Há uma Política/Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo a ser observada quando do cumprimento por adolescentes em meio aberto? Caso positivo, solicita-se que seja enviado a esta Promotoria de Justiça cópia integral e, se possível, também cópia em formato digital;

A partir de que ano o programa de atendimento/cumprimento de medidas socioeducativas começou a ser prestado pela Municipalidade?

Desde então o serviço é prestado diretamente pela Municipalidade ou foi firmado convênio com alguma entidade não-governamental? Caso tenha sido firmado convênio, enviar cópias integrais dos termos firmados, dos últimos 5 (cinco) anos em que serviços foram prestados por convênio.


O programa foi registrado no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente? Caso positivo, enviar copia integral, com a respectiva cópia da ata da primeira aprovação e subsequentes renovações;

Quanto às medidas socioeducativa de Liberdade Assistida:

e.1. Em que local são cumpridas?

e.2. Como é realizado o programa de cumprimento?

e.3.Como é feita a orientação e o acompanhamento dos adolescentes e de suas famílias?

e.4.O programa possui fluxograma de atendimento? Caso positivo, que seja juntada uma cópia.

Quanto às medidas socioeducativas de prestação de serviços à comunidade:

f.1. Quais as entidades/instituições públicas e/ou privadas cadastradas para o recebimento dos adolescentes?

f.2. Como é realizado o programa de cumprimento?

f.3. Como é feita a orientação e o acompanhamento dos adolescentes e de suas famílias?

f.4. O programa possui fluxograma de atendimento? Caso positivo, que seja juntada uma cópia.

Quais os profissionais que integram os programas de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços a Comunidade? São eles concursados? Em que local trabalham? No mesmo local do Centro de Referência de Assistência Social/Centro de Referência Especializado de Assistência Social?

A equipe responsável pela execução das medidas socioeducativas é a mesma responsável pelo atendimento de outros programas no Município? Quais? Em quais horários há o atendimento dos programas indicados? Enviar planilha/escala de atendimento referente aos programas;


Quais os valores gastos para a execução do programa? De qual(is) Secretaria(s) são provenientes? Encaminhar a Lei Orçamentária do ano corrente com as especificações de verbas para o programa, assim como os comprovantes de efetivo repasse dos valores correspondentes ao Fundo Municipal da Assistência Social.

10. Com a vinda das respostas da Municipalidade, independentemente de novo despacho, agende-se a oitiva do(a) Coordenador(a) responsável pelo atendimento das medidas socioeducativas em meio aberto (Coordenador do CREAS/CRAS/Entidade não-governamental responsável/ou do Programa Específico de atendimento) para que responda, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, sem prejuízo de outros esclarecimentos:

a) Quanto à infra-estrutura e os recursos humanos: 

a.1) as normas de espaço físico são exclusivas e adequadas? 

a.2) há salas individuais, que preservem a intimidade do adolescente e sua família?

a.3) há local para atividades em pequenos grupos? 

a.4) há garantia quanto à presença do adolescente e de sua família na elaboração dos Planos Individuais de Atendimento (PIAs)? 

a.5) há condições de realização de atividades técnicas e visitas domiciliares? Estas são realizadas (juntando cópias dos termos/relatórios que as comprovem em relação aos últimos 6 meses)?

a.6) Há adequados materiais permanentes e de consumo para o desenvolvimento do serviço, tais como veículo, mobiliário, computadores, linha telefônica, entre outros?

b) Quanto aos aspectos pedagógico e de atendimento: 

b.1) há projeto pedagógico redigido com observância das diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)? Há a elaboração de Planos Individuais de Atendimento (PIAs), garantida a participação do adolescente e da família, formatado em atenção aos seguintes aspectos: jurídico, saúde, psicológico, social e pedagógico?

b.2) há garantia de escolarização; inserção em cursos profissionalizantes ou no mercado de trabalho; acesso do adolescente e da família a programas assistências? 

b.3) há frequência em atividades de cultura e lazer?

b.4) há garantia de acesso e tratamento de qualidade a adolescentes com transtornos mentais, preferencialmente na rede pública extra-hospitalar de atenção à saúde mental? Há encaminhamento prioritário para o atendimento na rede de atenção à saúde física e mental? 

b.5) qual o número de adolescentes sob responsabilidade de orientadores?

b.6) Há garantia de número adequado de profissionais: 

- na prestação de serviços à comunidade, de um técnico para cada vinte adolescentes e a existência da referência socioeducativa 
(gerência) para cada grupo de dez adolescentes e um orientador socioeducativo (monitor) para até dois adolescentes?

- na liberdade assistida: um técnico para no máximo vinte adolescentes? Caso negativo, informe qual a estrutura atual.

c) Quanto à gestão e administração de recursos humanos: 

c.1) Quem é o gestor do Programa? São observados os princípios de efetiva participação dos gestores diretos do sistema socioeducativo para coordenar, monitorar, supervisionar e avaliar a implantação dos programas, buscando a intersetorialidade? 

c.2) há diagnóstico situacional dinâmico e permanente, com levantamentos periódicos e permanentes, quantitativo e qualitativo, dos serviços e atendimentos prestados? 

c.3) há formação contínua (educação permanente/continuada) dos profissionais que prestam os serviços de atendimento? 

c.4) o número de profissionais que compõem a equipe técnica (conforme acima citado) é suficiente e adequado às mínimas condições de atendimento?

c.5) há equipe técnica multiprofissional capacitada para acolher os envolvidos e acessar a rede de atendimento pública e comunitária? 

c.6) há um fluxo de acompanhamento dos casos?

c.7) Existe forma de controle de dados e informações sobre o atendimento prestado/índice de reiteração de infrações (reincidências); óbitos? Caso positivo, qual a forma de controle? 

O Ministério Público desta Comarca estabelece o prazo de 1 (um) ano para a conclusão deste Inquérito Civil, conforme artigo 11 do artigo 81/2008/PGJ.

Publique-se no mural.


Palhoça, 22 de fevereiro de 2012.


Aurélio Giacomelli da Silva
Promotor de Justiça


  


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Jornal O Globo - Meninos são aliciados para virar transexuais em SP



Fotógrafa: Cleide Carvalho/O Globo
SÃO PAULO - Magra, cabelos compridos, short curto. M., 16 anos, abre o sorriso leve e ingênuo dos adolescentes quando perguntada se pode dar entrevista. Poderia ser uma das milhares de meninas que sonham com as passarelas. Mas não é. O relógio marca 1h de sexta-feira. M. é um garoto e está na calçada, numa das travessas da Avenida Indianópolis, conhecido ponto de prostituição de travestis e transexuais, escancarado em meio a casas de alto padrão do Planalto Paulista, na Zona Sul de São Paulo. A poucos passos, mais perto da esquina, está K., também de 16 anos.




— Sou muito feminina. Não tem como não ser mulher 24 horas por dia — diz K.

M. e K. são a ponta do novelo que transformou São Paulo num centro de tráfico de adolescentes nos últimos cinco anos. Meninos a partir de 14 anos são aliciados no Ceará, no Rio Grande do Norte e no Piauí e, aos poucos, são transformados em mulheres para se prostituírem nas ruas de São Paulo e em países da Europa. Misturados a travestis maiores de idade, eles são distribuídos em três pontos tradicionais de prostituição transexual em São Paulo: além da Indianópolis, são encaminhados para a região da Avenida Cruzeiro do Sul, na Zona Norte, e Avenida Industrial, em Santo André, no ABC paulista.

O primeiro contato é feito por meio de redes de relacionamento na internet. Uma simples busca por “casas de cafetina” leva os garotos a perfis de aliciadores, que são homens, mulheres e travestis. 

Após o primeiro contato, pedem que o adolescente encaminhe uma foto por e-mail, para que seja avaliado. Se for considerado interessante e “feminino”, eles têm a passagem paga pelos aliciadores. 

Ao chegar a São Paulo, passam a morar em repúblicas de transexuais e a serem transformados. 

Recebem inicialmente megahair e hormônios femininos. Quando começam a faturar mais com os programas nas ruas, vem a oferta de prótese de silicone nos seios. Os escolhidos para ir à Europa chegam a ser “transformados” em tempo recorde, apenas cinco meses, para não perder a temporada na zona do euro.

É fácil identificar os adolescentes recém-chegados. Além do corpo típico da idade, eles têm seios pequenos, produzidos por injeção de hormônios, e megahair. Testados inicialmente na periferia, os meninos são distribuídos nos pontos de prostituição de acordo com a aparência. Os considerados mais bonitos recebem investimento mais alto e vão trabalhar na área nobre da cidade. Na Avenida Indianópolis, recebem R$ 70 por um programa no drive in e R$ 100 se o programa for em motel. Nos outros dois endereços, o valor é bem mais baixo: entre R$ 30 e R$ 50 no drive in e R$ 70 a R$ 80 em motel.

Menores evitam ruas principais

Não faltam interessados. A partir de 17h, homens na faixa de 30 a 50 anos aproveitam o fim do expediente para, antes de seguir para casa, fazer programas rápidos com os transexuais na Indianópolis. Um furgão preto, com insulfilme, faz o transporte de vários transexuais. Mas, nesse horário de maior movimento, dificilmente os menores ficam à vista nas calçadas.

Por existirem há décadas, os pontos de prostituição de travestis são vistos com naturalidade pelos moradores de São Paulo. Afinal, se prostituir não é crime. Por isso, a rede criminosa se mistura aos transexuais mais antigos. Assim como eles recebem a proteção da Polícia Militar para não serem agredidos por grupos homofóbicos, os novos fios do novelo se entrelaçam, dando à rede de tráfico internacional de adolescentes o mesmo aparato de segurança e legalidade que é dado aos transexuais ditos “independentes”.

Em geral, os transexuais adolescentes ficam nas travessas, atrás dos grupos de maiores de idade, que ficam quase nus e são extremamente expansivos. Pacíficos, os dois grupos convivem bem com a vizinhança, exceto pelo constrangimento proporcionado pelos mais velhos (acima de 25 anos) sem roupa ou exibindo partes íntimas ou siliconadas.

Os adolescentes são mais discretos, menos siliconados e “montados”. A aparência de menina é mais natural. Os implantes de silicone nos seios são menores, num apelo direcionado aos pedófilos. Eles usam saias e shorts curtinhos, como M. e K., e podem ser facilmente confundidos com meninas.

Como na Indianópolis prostitutas e travestis dividem espaço, clientes são surpreendidos pela nova leva de jovens vindos de outros estados, de aparência cada vez menos óbvia.
Y., 19 anos, é um dos transexuais que fazem aumentar a confusão. Aos 15, foi levado a São Paulo pela rede de prostituição e pedofilia.

— A cafetina viu que eu era feminina e que ganharia muito dinheiro. Minha mãe assinou autorização para eu viajar, e vim de avião. Ficou preocupada, como toda mãe, mas deixou — conta.
Inicialmente, foi levado a trabalhar na Avenida Industrial, em Santo André, no ABC paulista. Pagava R$ 20 pela diária na república, sem almoço.

— Quem não tivesse os R$ 20 tinha de voltar para a rua, não entrava enquanto não conseguisse — diz ele.

Mesmo sem ter sido transformada, já chamava atenção. Logo começou a faturar R$ 250 por dia. Aos 16 anos, recebeu “financiamento” para colocar prótese de silicone no seio. O implante foi feito por cirurgião plástico. Custou R$ 4 mil, mas Y. teve de pagar R$ 8 mil à cafetina, pois não tinha dinheiro para quitar à vista.

Y. diz que aceitou porque queria ficar feminina logo. Neste mercado, os seios são vistos como principal atributo. Quanto mais aparência de mulher, mais os clientes pagam. Agora, a jovem mora sozinha num flat e paga seu aluguel. Diz que divide o espaço da avenida tranquilamente e já não deve nada a ninguém. Faz entre seis e 10 programas por noite, afirma, enquanto lança olhares às dezenas de carros que passam rente à calçada, não se sabe se por curiosidade ou atração fatal.