Equipe:


Aurélio Giacomelli da Silva - Promotor de Justiça

Letícia Titon Figueira - Assistente de Promotoria

Ana Paula Rodrigues Steimbach - Assistente de Promotoria

Mallu Nunes - Estagiária de Direito

Giovana Lanznaster Cajueiro - Telefonista

Mário Jacinto de Morais Neto - Estagiário de Ensino Médio




terça-feira, 26 de julho de 2011

Uma história que eu não gostaria de contar - Adriano Silva



Fonte do texto: www.exame.com.br

Se você silenciar, vira cúmplice, parceiro. Se você virar a cara e fingir que não está acontecendo, também.

A história é assim. Uma mulher de uns 50 e poucos anos, pobre, sem instrução, mora na periferia de uma grande capital brasileira. Não é miserável, pelos padrões do Brasil, mas acomodou-se na ignorância e na falta de perspectiva. Se morasse nos Estados Unidos, seria daqueles pessoas sem respeito próprio que decidem viver do welfare, às custas da ajuda do governo para não morrer de fome, o que é o último estágio na estrutura social americana. Por aqui, ela é mais uma entre tantas integrantes da classe D, equilibrando-se precariamente no último degrau da dignidade, ainda com alguma comida sobre a mesa mas com a certeza de que jamais ascenderia à classe média baixa.

Essa mulher tem duas filhas, ambas com pouco mais de 25 anos. Cada uma de um casamento diferente. Os progenitores, como é comum, viviam suas vidas noutro lugar, talvez com outras famílias, absolutamente alheios ao curso das vidas daquelas duas meninas. A mulher tem um novo marido. Um namorado que, também como é comum, virou um agregado da casa. A filha mais nova da mulher tem um menino de 8 anos. A filha mais velha também tem uma filha. Eles moram todos juntos. A filha mais velha teve a sua menina ainda adolescente, como é comum. E também como é comum, essa menina, a neta da matriarca, também engravidou adolescente. Eis o que não é comum: a criança que essa menina deu à luz é filha do namorado da avó. Ou seja: o padrasto da sua mãe é ao mesmo tempo pai legítimo e bisavô postiço da criança recém nascida. O homem abusou sexualmente da neta da sua companheira. Repetidas vezes, soube-se depois. Se é que já não se sabia disso antes. A menina, aos 13 anos, era mãe do bisneto da sua avó e também uma vítima da violência sexual imposta pelo namorado que a dona dessa pensão manicomial havia trazido para dentro de casa.

Acredite ou não, depois do pequeno rebuliço armado com a gravidez da neta nessas condições hediondas, a dona da casa resolveu permitir que o namorado continuasse morando ali. Perdoou-o. A família, ou aquele ajuntamento de gentes, como você preferir, continuou morando junto, assistindo TV amontoada na sala, dividindo o mesmo banheiro e a mesma geladeira. Até que, algum tempo depois, o previsível aconteceu: o namorado da mulher, padrasto das filhas, pai e bisavô postiço do bebê, abusou daquele que seria o seu outro neto, o menino de 8 anos, filho da filha mais nova de sua companheira. Um menino, na tenra infância, muito antes da puberdade, fora abusado sexualmente por seu avô emprestado, pelo amante da avó.

Outro rebuliço e desta vez o sujeito é colocado para fora de casa. Depois de ter maculado indelevelmente duas crianças. Sob a negligência e a quase cumplicidade da mulher e também de suas duas filhas, mães das crianças vitimadas, que de algum modo compactuaram com as condições para que esse pesadelo acontecesse. Essa é a última notícia que tenho para relatar. Talvez o abusador já tenha voltado e tenha sido outra vez perdoado e tenha sido outra vez reintegrado à casa. Talvez a mulher tenha consumado suas ameaças de mandar matá-lo e ele já esteja apodrecendo numa vala. Não sei. O que sei é que esse conto de horror não aconteceu apenas na periferia de uma cidade brasileira, ele aconteceu também na periferia da minha família.

Resolvi contar essa história porque o silêncio é sempre favorável ao crime, é sempre um incentivo a que as agressões se repitam e se eternizem. Especialmente no que se refere ao abuso e à violência sexual contra menores. Esse é um dos maiores tabus que ainda existem entre nós. Ninguém quer saber, ninguém quer ouvir, ninguém quer enxergar, ninguém quer admitir que isso existe, ninguém quer lidar com fatos dessa natureza. Todo mundo prefere achar que isso só acontece lá longe, com os outros, num lugar distante o suficiente para não nos envolvermos, para não termos que encarar a foto insuportável nem sentir o cheiro fétido. No entanto, apagar a luz não faz o monstro desaparecer. Ao contrário, isso só o torna mais letal – porque o monstro enxerga e opera no escuro, e nós não. É constrangedor e é desagradável relatar uma história dessas. Mas já aprendi que é muito mais vergonhoso não contá-la. Porque isso significa em grande medida compactuar com ela, oferecer condições para que ela continue acontecendo e ceifando novas vítimas. E essa é uma guarida que eu jamais oferecerei ao Lado Sombrio da Força. Eu sou Jedi.

A saber: em 2010, fiz o primeiro trabalho voluntário da minha vida, ajudando o pessal da Childhood, do World Childhood Foundation (WCF), a Fundação da Rainha Sílvia, da Suécia, a lançar o seu site. Isto certamente não foi uma coincidência. Se você conhece algum caso como esse, ou desconfia que algo parecido possa estar acontecendo ou possa vir a acontecer com alguém, se você foi abusado ou se você sente que em algum momento pode vir a se tornar um abusador, entre em contato com eles. Denuncie, peça informação, solicite ajuda.
Adriano Silva
28/01/2011

Extraído do site da ONG Childhood Brasil - link aqui


Um comentário:

  1. Gostaria de saber como está o andamento da Ação Civil Pública em relação ao Centro de Referência Especializado em Assistência Social - CREAS designada pelo Ministério Público. Sabe-se que a demanda reprimida é crescente diariamente e existem profissionais atuantes na área, como assistentes sociais, psicólogos, pedagogos que foram aprovados no Concurso Público. Além disto, como é de conhecimento o SUAS é uma lei (a partir de junho de 2011), a qual deve ser plenamente e obrigatoriamente cumprida, seguindo também as diretrizes da NOB-RH/SUAS. Dentre estas diretrizes, a NOB-RH/SUAS para Municípios em Gestão Plena, como é o caso do Município de Palhoça, determina os seguintes profissionais como parte da equipe de referência: 01 coordenador, 02 assistentes sociais, 02 psicólogos, 01 advogado, 04 profissionais de nível médio ou superior (abordagem dos usuários), 02 auxiliares administrativos, sendo que toda esta equipe é para a capacidade de atendimento de 80 pessoas/indivíduos, com carga horária de 40 horas semanais. Como é de conhecimento, esta não é a realidade do CREAS do Município de Palhoça e a partir disto podemos refletir sobre a seguinte questão: Como fica a qualidade dos atendimentos dos profissionais às famílias, visto que os mesmos devem atender um número significativamente excedente de indivíduos, conforme determinação da Coordenação?
    Percebo que com todo o empenho e a determinação do Ministério Público, no intuito da garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes do Município de Palhoça, ações intentando a mudança no quadro exposto acima continuarão a ser pensadas. As crianças, os adolescentes e suas famílias vítimas de negligência, maus-tratos, violência sexual agradecem.
    Continuamos ao aguardo e certos da mudança deste quadro.

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