Segue o teor da decisão.
Autos n° 0903014-32.2013.8.24.0045
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
1. Trato de AÇÃO CIVIL PÚBLICA proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA em face do MUNICÍPIO DE PALHOÇA, na qual o autor requer, em sede liminar, que o réu seja compelido a inserir a criança *, juntamente com sua família, nos atendimentos prestados pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos de Palhoça (PAEFI), no prazo de (05) dias, uma vez que o infante encontra-se em situação de risco.
Alega o Ministério Público, com supedâneo no ofício n. 113/2013 (fls.15/20), que: (a) o genitor do menor manipula o comportamento de sua companheira e do filho, provocando transtornos psicológicos e emocionais à família, sendo que o ambiente em que vive o menor está cercado de constantes conflitos, agressões, ameaças, isolamento familiar, constrangimento, humilhação e insultos; (b) que o pai sai de casa deixando o filho sozinho, trancado, com o som do rádio em alto volume, a fim de que ninguém perceba que a criança fica abandonada e só; (c) que a criança não recebe alimentação adequada, uma vez que os pais fornecem apenas macarrão instantâneo, salgadinhos etc; (d) que a equipe do CRAS de Palhoça suspeita de que a criança vem sendo abusada sexualmente por seu pai.
Afirma o Parquet, ainda, que por meio do Inquérito Civil n.º 06.2013.00010468-7, buscou incessantemente resolver a problemática da falta de atendimentos no PAEFI, propondo ao Município a celebração de Termo de Compromisso de Ajustamento de Condutas, que restou não aceito por aquela municipalidade.
Pugna, por fim, pela cominação de multa destinada ao Prefeito Municipal de Palhoça e ao Secretário Municipal de Assistência Social de Palhoça, para caso de descumprimento da obrigação de inserção do infante e de sua família nos atendimentos do PAEFI.
É o breve relatório.
2. De partida, registro que o Ministério Público tem legitimidade para atuar no polo ativo desta ação. Embora o direito a ser tutelado aqui seja de natureza individual, seu caráter indisponível autoriza a participação do Parquet como autor da causa.
É da jurisprudência:
"Ex vi' do art. 201, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Ministério Público possui legitimidade para promover ação civil pública em defesa de interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência. É que 'tratando-se de interesses indisponíveis de crianças ou adolescentes (ainda que individuais), e mesmo de interesses coletivos ou difusos relacionados com a infância e a juventude - sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo (MAZZILLI, Hugo de Nigro)' (Rel. Des. Francisco Oliveira Filho)." (TJSC, Reexame Necessário n. 2011.099343-1, de Braço do Norte, rel. Des. Jaime Ramos, j. Em 31/05/2012)
3. Da mesma forma, entendo plenamente viável o pedido de obrigação de fazer formulado em face do Município de Palhoça, para fins de inclusão do menor e de sua família no PAEFI, uma vez que trata-se de serviço já municipalizado, o que demanda, por conseguinte, a aplicação da medida de proteção insculpida no art. 100, parágrafo único, III, in fine, do ECA.
Mutatis mutandis, colho da jurisprudência:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROTEÇÃO DE MENOR. SITUAÇÃO DE RISCO E ABANDONO. RESPONSABILIDADE DO PODER PÚBLICO. Correta a decisão que determinou a inserção de criança em situação de risco e abandono em abrigo LBV, sob pena de responsabilização civil e criminal do Prefeito Municipal, devendo ser mantida. Inteligência dos artigos 227 da Constituição Federal e 4.º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Negado seguimento ao agravo." (TJRS, Agravo de instrumento n.º 70014387005, rel. Des. Walda Maria melo Pierro, j. Em 20/02/2006)
"AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – Ajuizamento pelo Ministério Público em face do Município com o propósito de obrigá-lo a disponibilizar local apropriado para servir de abrigo a crianças e adolescentes em situação de risco – procedência do pedido corretamente pronunciada em primeiro grau – Poder Judiciário que pode impor às Prefeituras o cumprimento dos deveres provenientes da lei n.º 8069/90 – medida protetiva de abrigo que se encontra prevista no artigo 101, inc. VII, do Estatuto citado, sendo inadmissível a omissão administrativa – juízo “a quo” que, na fase de cumprimento da sentença, deverá analisar se a celebração de convênio noticiada nos autos atende o escopo legal – reexame necessário e apelo da Prefeitura não providos." (TJSP, Apelação Cível n.º 522.169.5/0-00, rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. Em 29/08/2007)
Feita esta ponderação de ordem processual, ingresso no exame do pleito de liminar.
3. A petição inicial traz em seu bojo pedido de antecipação de tutela.
O instituto da antecipação de tutela tem plena aplicabilidade no âmbito da ação civil pública, em face do que estabelecem os arts. 12 e 19 da Lei 7.347/85; arts. 84, § 4.º e 90 da Lei 8.078/90; e art. 273 do CPC.
Para que um pedido de antecipação de tutela tenha sucesso, deve haver prova inequívoca da verossimilhança das alegações feitas na inicial.
Além disso, há que se verificar a existência de receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou caracterização do abuso do direito de defesa.
Examinando os autos, vejo que as alegações feitas na inicial são verossímeis.
É que a situação relatada pelo CRAS, no relatório de fls. 15/20, é contundente e retrata bem a condição de risco por que vem passando o menor.
Assim, conforme informação colhida pelo CRAS às fls. 15/18:
"De acordo com dona (...)
Já em atendimento à genitora do menor, o CRAS registrou que:
(...) (fls. 18/20)
Por fim, quanto à situação de risco do menor, foi constatado pelo CRAS que:
"Com relação a *(...)
Além disso, vejo que por meio do termo de audiência de fls. 37/38, promovida nos autos de Inquérito Civil n. 06.2013.00010468-7, que contou com a presença do Sr. Promotor de Justiça, Sra. Procuradora do Município de Palhoça, Sr. Secretário Municipal de Assistência Social, Sra. Diretora de Assistência Social, Sra. Coordenadora Geral do CREAS, Sr. Coordenador do PAEFI, representantes do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, e Sra. Advogada do CREAS, foi consignado que o Município não assinaria o TAC destinado a eliminar a demanda reprimida por atendimento no PAEFI de aproximadamente 200 famílias, por inexatidão de dados e incertezas em relação ao número de profissionais necessários para complementar o serviço.
No entanto, o direito à integridade física e moral da criança não pode ser violado por omissão do Poder Público. Além disso, trata-se de serviço especializado de média complexidade já municipalizado. Por isso, caberia ao Município garantir o atendimento às famílias, ou, no mínimo, diante do alegado quadro deficitário de pessoal, ter procurado outras alternativas para equacionar momentaneamente a demanda reprimida, até contratação de novos servidores, o que, de fato, não ocorreu.
Por isso, diante desse gravíssimo quadro, entendo que a criança e sua família têm o direito de ser imediatamente inserida nos atendimentos prestados pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos de Palhoça (PAEFI).
Caso isso não ocorra, existe o risco de * sofrer dano irreparável ou de difícil reparação, o que resultará em prejuízo significativo no desenvolvimento social, psicológico e humano dele.
Justo, pois, que o pleito de antecipação de tutela articulado pelo Ministério Público seja acolhido.
Além disso, estou deferindo o pedido de antecipação de tutela, sem a prévia oitiva do Município de Palhoça, porque entendo que o caso sob exame é excepcional. A omissão de que trato aqui é gravíssima, pois vem acarretando a violação de direito fundamental e indisponível da criança.
Sobre a possibilidade de deferimento de liminar em ação civil pública, sem prévia oitiva do ente público, vale conferir o seguinte precedente:
"ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCESSÃO DE LIMINAR SEM OITIVA DO PODER PÚBLICO. ART. 2° DA LEI 8.437/1992. AUSÊNCIA DE NULIDADE. 1. O STJ, em casos excepcionais, tem mitigado a regra esboçada no art. 2.º da Lei 8437/1992, aceitando a concessão da Antecipação de Tutela sem a oitiva do poder público quando presentes os requisitos legais para conceder medida liminar em Ação Civil Pública. 2. No caso dos autos, não ficou comprovado qualquer prejuízo ao agravante advindo do fato de não ter sido ouvido previamente quando da concessão da medida liminar. 3. Agravo Regimental não provido." (STJ, AgRg no AI 1.314.453/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. Em 21.09.2010)
O argumento da irreversibilidade também não pode obstar o deferimento da antecipação de tutela buscada pelo Ministério Público. Como bem destacou o Desembargador Jaime Ramos, membro do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento n. 2011.039816-7, "a legislação que rege a matéria deve ser interpretada sob a ótica da proporcionalidade no sentido da possibilidade da concessão da tutela antecipada, ainda que irreversível a medida, quando for absolutamente necessário obrigar o Poder Público a satisfazer, de modo excepcional, obrigação de proporcionar à população os direitos básicos ssegurados na Carta Magna".
Com essas considerações, DEFIRO o pleito de antecipação de tutela constante na inicial, para DETERMINAR que o MUNICÍPIO DE PALHOÇA insira, no prazo de 05 (cinco) dias, a criança *, juntamente com sua família, nos atendimentos prestados pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos de Palhoça (PAEFI).
4. Considerando que esta decisão estabelece para o réu obrigação de fazer, nada impede que seja fixada multa cominatória para coagir o Município de Palhoça a cumpri-la. Tal multa encontra respaldo nos arts. 287 e 461 do CPC, bem como no art. 11 da Lei 7.347/85.
Definindo o alcance do art. 11 da Lei 7.347/85, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que a multa "(...) pode ser direcionada não apenas ao ente estatal, mas também pessoalmente às autoridades e aos agentes responsáveis pelo cumprimento das determinações judiciais" (STJ, REsp 1111562/RN, rel. Min. Castro Meira, j. em 25.08.2009). A única exigência que se faz, para que a multa seja destinada às autoridades responsáveis pelo adimplemento da obrigação de fazer, é que as mesmas sejam notificadas, de alguma forma, para se manifestarem nos autos, de maneira que possam exercer os direitos ao contraditório e à ampla defesa.
No bojo do acórdão lavrado nos Edcl no REsp 1111562/RN, o Ministro Castro Meira deixou consignado que essa notificação da autoridade deve ser realizada antes da tomada da decisão liminar. Neste ponto, peço vênia para discordar. Se o próprio STJ entende que em casos excepcionais a liminar na ação civil pública pode ser deferida sem a oitiva da parte contrária, não vejo problema em estabelecer a multa cominatória destinada à autoridade pública inaudita altera pars. Como bem ponderado pelo Desembargador do TJSC, Luiz Cézar Medeiros, no voto proferido no Agravo de Instrumento n. 2011.006614-3, "nada impede que a autoridade pública venha posteriormente aos autos comunicar ao Juízo a existência de situação excepcional impeditiva da obediência do comando judicial, no interregno nele fixado, sem afrontar, por conseguinte, os seu direito ao contraditório e à ampla defesa".
Ressalto que, em casos de obrigação de fazer semelhantes a este, o TJSC tem autorizado a aplicação da multa cominatória destinada ao agente público responsável pelo cumprimento da obrigação:
"REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - PRELIMINAR DE
ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO AFASTADA - ARTS. 127 E 129 DA CRFB, ARTS. 200 E 201 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI N. 8.069/90) - CRECHE - DIREITO À EDUCAÇÃO - INTELIGÊNCIA DO ART. 208, §§ 1º E 2º, E ART. 227 PRECEITO CONSTITUCIONAL REPETIDO NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ART. 54 - NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA - EXIGIBILIDADE DE INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO EXERCÍCIO DE MISSÃO CONSTITUCIONAL - IMPOSIÇÃO AO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL PARA O CUMPRIMENTO DE DISPOSIÇÃO DA MESMA GRANDEZA - GARANTIA DE PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE - PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES NÃO VIOLADO - APLICAÇÃO DE MULTA "ASTREINTES" AO PREFEITO MUNICIPAL - POSSIBILIDADE - DESPROVIMENTO DO RECURSO E DA REMESSA" (TJSC, Ap. Cível 2009.038107-9, de Blumenau, rel. Des. José Volpato de Souza, j. Em 19.11.2010).
"ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DE DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL - LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE COATORA PARA INTERPOR RECURSO CONTRA A SENTENÇA AFASTADA - DIREITO À EDUCAÇÃO - INOVAÇÃO RECURSAL - IMPOSSBILIDADE (CPC, ART. 517) - NEGATIVA DE PEDIDO DE INSCRIÇÃO EM CRECHE MUNICIPAL - AFRONTA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – INOCORRÊNCIA - GARANTIA CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO - NORMAS DE EFICÁCIA PLENA - MULTA DIÁRIA - POSSIBILIDADE - DEVER DA AUTORIDADE IMPETRADA DE ARCAR COM O VALOR CORRESPONDENTE À PENA PECUNIÁRIA EM FACE DA SUA RESPONSABILIDADE PELO CUMPRIMENTO DA ORDEM JUDICIAL. A autoridade impetrada, acusada de coação ilegal, tem legitimidade para interpor recurso de apelação contra a sentença concessiva de mandado de segurança. "O ordenamento jurídico apresenta-se, em regra, contrário à inovação recursal. As questões de fato não suscitadas na instância inferior não podem ser apreciadas pelo Tribunal 'ad quem', exceto se provado motivo de força maior, nos termos do art. 517 do CPC. 2. 'Os documentos extemporaneamente juntados não podem ser apreciados em sede de recurso ordinário sob pena de ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição' (AgRg no RMS 18.685/PR, Rel. Min. GILSON DIPP, Quinta Turma, DJ de 7/3/05)." (STJ, RMS n. 22.255/AM, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima). O direito à educação é um dos mais sagrados direitos sociais, porquanto a própria Constituição lhe confere o status de direito público subjetivo, impondo à Administração Pública o encargo de propiciar, com políticas sociais concretas e efetivas, o amplo acesso aos estabelecimentos de ensino, inclusive nas creches e na pré-escola para crianças de zero a cinco anos. A obrigação da autoridade coatora de arcar com o valor da multa diária justifica-se em razão de que é ela a responsável pela coordenação pedagógica no Município, uma vez que a finalidade da pena pecuniária é justamente a coação do responsável pelo implemento da obrigação ao seu cumprimento na forma específica (art. 461, § 4º, do CPC). O valor da multa aplicada na sentença para o caso de não cumprimento do acesso de crianças às vagas da rede de ensino público deve ser fixado de maneira a que "o devedor deve sentir ser preferível cumprir a obrigação na forma específica a pagar o alto valor da multa fixado pelo juiz" (Nelson Nery Júnior), sem, todavia, servir como instrumento de enriquecimento desarrazoado da parte contrária" (TJSC, Ap. cível em Mandado de Segurança n. 2008.039404-2, de Criciúma, rel. Des. Jaime Ramos, j. Em 17.12.2009).
Isto posto, FIXO multa cominatória, no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) para cada dia de atraso (R$ 100,00 para cada um), destinada ao Prefeito Municipal de Palhoça, Sr. Camilo Nazareno Pagani Martins e ao Secretário Municipal de Assistência Social, Sr. Nilson João Espíndola, a fim de persuadi-los a tomar as providências necessárias no sentido de cumprir esta decisão.
Tal multa será descontada diretamente da folha de pagamento do Prefeito Municipal e do Secretário Municipal de Assistência Social, sendo revertida em favor do FIA - Fundo da Infância e Juventude de Palhoça.
5. CITE-SE o réu (via oficial da infância e juventude), na pessoa do Sr. Prefeito Municipal ou de seu Procurador (art. 12, II, do CPC), para, se desejar, ofertar defesa, no prazo legal (art. 297 c/c art. 188 do CPC).
6. NOTIFIQUE-SE, pessoalmente (via oficial da infância e juventude), o Prefeito Municipal de Palhoça, Sr. Camilo Nazareno Pagani Martins e o Secretário Municipal de Assistência Social, Sr. Nilson João Espíndola, para, se desejarem, apresentar defesa, na condição de terceiros interessados, no mesmo prazo estabelecido no item "5" acima.
7. INTIMEM-SE.
Palhoça/SC, 10 de outubro de 2013.
Cíntia Ranzi Arnt
Juíza Substituta
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